Ricardo Carvalho Calero, fora de lugar
O 17, día de Carvalho Calero
Ricardo Carvalho Calero, fora de lugar
Ernesto V. Souza
À memória de Domingos Prieto Alonso, bom discípulo, melhor mestre, também fora de lugar.
No castelo de Luna, aló nos montes,
o real prisioneiro aferrollado
quer morrer, e morrer quer, o coitado,
con cadeas que á groria foron pontes.
Día aquil sen mañá i enchento de ontes.
Ribadavia souril, Avia loubado…
Cabaleiros, besteiros no fousado…
Balbor de Deus no gurgullar das fontes…
Ai, adéus… De unha vida – treboada
de courazas e pó, elmos e croas,
súpeta e deloirante cabalgada –
Fican os ferros sós, as chagas soas,
e unha morna saudade aluarada,
rei da saudade, que ao teu reino voas.
R. Carvalho Calero, Morte do Rei don García, 1954*
Devo à amiga Wika Grygierzec, o belo conceito, homem-instituição (em polaco: “człowiek-instytucja”), sinónimo duma autoridade máxima, de uma pessoa cujo nome e obras poderiam representar uma instituição, associação, coletivo, projeto, ou mesmo um conceito, uma ideia; aquela pessoa que dedicou toda a vida, ou boa parte dela, a uma obra ou a uma tarefa. Aplica-se enfim, àqueles cidadãos que por eles próprios, pelo seu mérito, algo de acaso e circunstância, pessoalidade ou capacidade humana e social terminam por ser considerados como referentes pela comunidade, e conformar arredor, ou perto de si, espaços quase institucionais.
Na Galiza temos numerosos exemplos de homens e mulheres, que sozinhas desenvolveram ou representaram trabalhos que deveriam ser feitos por uma equipa, grupo, por uma instituição: de Concepción Arenal a Maria Xosé Queizán, passando por Juana de Vega, Rosalia de Castro, Faraldo, Añón, Murguia, Vicetto, os Carré, Castelao, Otero Pedrayo, Anxel Casal, Fernández del Riego, Marinhas del Valle, Isaac Diaz Pardo, Anton Avilés… enfim, façam memória nas suas paróquias e coloquem os nomes em que pensarem.
O rechamante dos números, por pouco que nos ponhamos a contar, não se deve, a uma característica especial dos homens e mulheres do país, por muito que o Duque de Wellington e outros quisessem disfarçar, com proclamas, piropos e exaltações à individualidade, à emigração e ao empreendedorismo inimitáveis: o contraste deve-se mais à debilidade social do país e justamente à falta de verdadeiro corpo institucional, e à debilidade do para-institucional e contra-institucional.
Não podia ser doutro jeito, dado que na Galiza o tecido institucional próprio é muito fraco, em processo de destruição e substituição, com o resto. E o que é pior, o existente, de substituição, depende quase na sua totalidade do Estado e, portanto se conforma e financia arredor e com os dinheiros do projeto nacional espanhol em construção desde o século XIX.
“Na Galiza o tecido institucional próprio é muito fraco, em processo de destruição e substituição, com o resto. E o que é pior, o existente, de substituição, depende quase na sua totalidade do Estado.”
É por isso que temos nomes que basta dizê-los para encher a página de evocações e referências, e quase se evitaria escrever mais que Penélope em citando Diaz Castro e volta a começar. Um caso, neste sentido mono-institucional, é o de Ricardo Carvalho Calero. Sem dúvida, e progressivamente, nos últimos anos da sua vida e além, como divulgador, como professor doutor e, mais tarde, como defensor do Reintegracionismo, encaixa perfeitamente na categoria.
Presença, seriedade, prestígio social, firmeza, mensagem, coerência, exemplo, dignidade, uma certa elegância e não pouca autoridade académica. Porém, destaque-se, Carvalho, como muitos outros dos antes ditos, não é tanto um Homem-instituição como na realidade um homem de instituição.
Um homem de instituição, privado da Instituição, um out of place, arrastado por alguns dos seus entusiastas contemporâneos ao papel de Homem-instituição, de bandeira, de herói. Papel prometeico, no que ele, diríamos – e lembramos – não se sentia à vontade e que baralhava com a sua humildade.
Convinha analisar neste sentido, e – acho – não dividindo Carvalho em três Carvalhos cronológico-epocais-operativos (e risquianos): novo, maduro, velho; ou galeguista/republicano, Galáxio, Reintegrata, senão entendê-lo na coerência da consciência institucional e a sua situação (dentro-fora-margem-centralidade) a respeito delas. Assim, evidencia-se que as obras mais destacadas de Carvalho Calero estão associadas ao seu trabalho dentro de instituições.
Carvalho Calero. Fotografía da colección do Club de Prensa de Ferrol.
“Um homem de instituição, privado da Instituição, um out of place, arrastado por alguns dos seus entusiastas contemporâneos ao papel de Homem-instituição, de bandeira, de herói.”
De novo, como universitário de uma nova universidade possível, como membro da FUE (Federação Universitária Escolar), como elemento integrante do Seminário de Estudos Galegos, e como quadro ativo do Partido Galeguista, mesmo como autor literário dentro do movimento coletivo dos continuadores ou da geração de 1910, a do ano do cometa, e até um bocadinho mais tarde como aspirante à cátedra de letras de Liceu nas grandes Oposições de 1936 (facto determinante este de concentração de moços universitários na defesa de Madrid e nos quadros de oficiais) e depois como tenente do exército Republicano.
Justamente a quebra humana, pessoal e psicológica que significa o fim da Guerra civil com a derrota da República, à saída da prisão, e com o aniquilamento ou exílio dos protagonistas e dos espaços institucionais em que se formara, e para os quais se preparara com empenho e seriedade, fica patente o seu desenraizamento por privação para exercer a advocacia e a sua vocação, a docência.
Anos depois, em plena maturidade, integrar-se-á, com disciplina, meticulosidade, fervor e rigor no projeto de História da literatura, trabalho para o qual, provavelmente, não era o mais indicado, mas a pessoa que estava aí. Feita em precário, mas em clave para-institucional, no espaço e com o apoio que lhe brindará a Galáxia e no reconhecimento de ser parte do símbolo maior da Real Academia Galega. Cuja etapa final será desenvolvido na Cátedra de Língua e Literatura Galegas na Universidade de Santiago. Nunca mais destacou Carvalho que neste momento, em que integrado, disciplinado, entusiasmado faz parte de um espaço regular institucional.
Depois, convertido em bandeirante do movimento reintegracionista discrepante, ainda brilhará em momentos em que aparece o coletivo, conformando contra-instituição e deixando, conversas, artigos, palestras e gravações. Mesmo o legado tem um sentido institucional, auto-editado e auto-canonizada, a sua produção literária (poesia, teatro, prosa breve e romance biográfico) e ensaístico-jornalística, tudo num esquema prefigurado e ordenado para refletir o seu Passado imperfeito, o seu Futuro condicional e as suas Reticências, completado com uma narrativa da primeira parte da sua vida, em formato de romance polifónico.
“A tragédia, as tragédias de Carvalho, as suas derrotas exílios e saudades, ocultadas com elegância nas conversas e entrevistas, aparecem apontadas no seu teatro de cunho existencial, em boa parte da sua poesia introspectiva e plenas na sua correspondência.”
Neste sentido, que tristura pensar no que poderia ter sido o espaço universitário, político, social, institucional da Galiza em 1937 e que horror constatar o que foi. A tragédia, as tragédias de Carvalho, as suas derrotas exílios e saudades, ocultadas com elegância nas conversas e entrevistas, aparecem apontadas no seu teatro de cunho existencial, em boa parte da sua poesia introspectiva e plenas na sua correspondência, singularmente evidentes na mantida com Fernández del Riego. Assim em fragmentos de prosas várias, análises e poemas vão configurando a tragédia do homem formado, preparado para desenvolver a sua imensa capacidade de análise, energia e trabalho numa Instituição, privado primeiro por motivos políticos, depois por outros motivos políticos, do espaço institucional académico e cultural, e para-institucional.
Que terrível também o drama do homem entrando na velhice, que finalmente se incorpora, como novato, com uma metodologia desfasada, pedagogia e terminologia démodé, num espaço institucional controlado pelos mais diversos interesses e feudos, movimentado pelos truques burocráticos, as carreiras planificadas, as modas terminológicas e o teatro de códigos atrativos as novas gerações, reduzido a esquemas de favores, quadros docentes, seminários e departamentos, e não pelo mérito, no tardo franquismo e primeira democracia, e em nada semelhante à ideia da reforma da universidade moderna que sonhavam aqueles que eram moços da República.
Que drama intenso perpassa a figura, saudade e dor pela rotura com os antigos companheiros de Galáxia e da RAG, com os possíveis discípulos e com o rancor motivado pelo enfrontamento com os académicos do ILG e os populistas, que ainda ecoa. A renúncia pessoal e o enfrentamento intelectual, pago com a acusação afrontosa de traição, soberba, velhice, loucura e com o castigo do ostracismo institucional, académico, editorial, jornalístico.
“No mundo moderno os intelectuais académicos, não trabalham mais para mecenas, pois, mas trabalham a serviço da nação nas academias, universidades, publicações, congressos, editoras e jornais que os apresentam socialmente, mantêm e promovem.”
Carvalho, como Murguia, e tantos outros. Novamente os números cantam por excesso. Não pode ser uma questão individual, já de caráter forte, de crítica aceda inoportuna, já de soberba ou desafio aos poderosos, bem de génio indómito ou de pessoalidade arisca. No mundo moderno os intelectuais académicos, não trabalham mais para mecenas, pois, mas trabalham a serviço da nação, desenvolvendo doutrina, ciência, pensamento, educando o público, nas academias, universidades, publicações, congressos, editoras e jornais que os apresentam socialmente, mantêm e promovem.
O problema aparece quando a Nação, que é quem põe os dinheiros para ser construída, não é a mesma que a que os intelectuais quereriam construir. A Reichskulturkammer (palavra esta com os matizes e contexto que devo, por leitura, ao grande Victor Klemperer e a sua monumental LTI) que o Estado pretende construir e controlar, vai filtrando os elementos polémicos e contrários, atafegando-os, apartando-os, empecendo-os de chegar ou criar escola, eliminando-os lenta – ou rapidamente se houver ocasião – do espaço institucional. O que os priva de ordenado, espaço, apoios, equipas, lugares onde desenvolver o seu trabalho, recursos, colegas, discípulos, ritmo de trabalho, objetivos; priva-os também de mecânicas sociais, de plataformas onde publicar, de reforço, de crítica, de debate, de pares, de incentivos, motivações e de disciplina institucional.
Na Galiza dos anos 80, as instituições estavam a ser desenhadas – com apoio do galeguismo pinheirista – para construírem e normalizarem um modelo autonómico de língua e de cultura não conflituoso com o Estado. A história é longa e o conto tem muitos matizes e não poucas bifurcações argumentais secundárias, mas a cousa é que Carvalho, terminou convertido em Instituição, não por vontade, mas porque quem abandonou o sentido da instituição foram as instituições e os intelectuais institucionais que deveram ter sido os seus companheiros.
Carvalho Calero era um disciplinado, rigoroso, meticuloso homem de instituição. Não tinha, nem precisava, dos louros do herói. A sua aspiração era mais a de fazer parte, ser um digno ator coadjuvante, entre outros e mais protagonistas. Não é de reconhecimento que precisa. Ele é já um homem-instituição. A gente sabe. O que seria de justiça, e também um grande adianto para o coletivo e para as instituições, seria reconhecer-lhe – no contexto e circunstâncias prórpias – que essa sua achega à cultura galega é também plenamente institucional, para assim o seu trabalho, a sua obra, o seu magistério, a sua figura recuperarem o valor institucional, na centralidade de que deve formar parte, com o seu pensamento, proposta e obra.
* em “Tres sonetos de R. Carballo Calero (da academia Galega, especial para Lar)” em Lar- Revista del Hospital Gallego. B. Aires, nº 248-50, 25-VII-1954. (cópia devida à generosidade de Antón Capelán)
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