martes, 12 de mayo de 2015

Guerra Junqueiro - o Melro

Guerra Junqueiro - Poesia sobre animais - Site de Leila Míccolis





O MELRO

          O melro, eu conheci-o:

Era negro, vibrante, luzidio,

          Madrugador, jovial;

          Logo de manhã cedo

Começava a soltar, dentre o arvoredo,

Verdadeiras risadas de cristal.

E assim que o padre-cura abria a porta

          Que dá para o passal,

Repicando umas finas ironias,

          O melro; dentre a horta,

          Dizia-lhe: "Bons dias!"

          E o velho padre-cura

não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado,

Malicioso, alegre, prazenteiro;

Não tinha pombas brancas no telhado,

          Nem rosas no canteiro:

Andava às lebres pelo monte, a pé,

          Livre de reumatismos,

Graças a Deus, e graças a Noé.

O melro desprezava os exorcismos

          Que o padre lhe dizia:

Cantava, assobiava alegremente;

          Até que ultimamente

          O velho disse um dia:

"Nada, já não tem jeito!, este ladrão

          Dá cabo dos trigais!

          Qual seria a razão

Por que Deus fez os melros e os pardais?!"

          E o melro entretanto,

          Honesto como um santo,

          Mal vinha no oriente

          A madrugada clara,

Já ele andava jovial, inquieto,

Comendo alegremente, honradamente,

Todos os parasitas da seara

Desde a formiga ao mais pequeno insecto.

E apesar disto, o rude proletário,

          O bom trabalhador,

Nunca exigiu aumento de salário.

Que grande tolo o padre confessor!

          Foi para a eira o trigo;

          E, armando uns espantalhos,

          Disse o abade consigo:

"Acabaram-se as penas e os trabalhos."

Mas logo de manhã, maldito espanto!

          O abade, inda na cama,

Ouvindo do melro o costumado canto,

          Ficou ardendo em chama;

          Pega na caçadeira,

          Levanta-se dum salto,

E vê o melro, a assobiar, na eira,

Em cima do seu velho chapéu alto!

          Chegou a coisa a termo

Que o bom do padre-cura andava enfermo;

          Não falava nem ria,

Minado por tão íntimo desgosto;

E o vermelho oleoso do seu rosto

Tornava-se amarelo dia a dia.

E foi tal a paixão, a desventura

(Muito embora o leitor não me acredite),

          Que o bom do padre-cura

          Perdera  o apetite!



       ***
Andando no quintal, um certo dia, 

Lendo em voz alta o Velho Testamento, 

Enxergou por acaso (que alegria!, 

          Que ditoso momento!) 

Um ninho com seis melros, escondido 

          Entre uma carvalheira. 



E ao vê-los exclamou enfurecido:

"A mãe comeu o fruto proibido;

Esse fruto era minha sementeira:

          Era o pão, e era o milho;

          Transmitiu-se o pecado.

E, se a mãe não pagou, que pague o filho.

É doutrina da Igreja. Estou vingado!"

E, engaiolando os pobres passaritos,

          Soltava exclamações:

          "É uma praga. Malditos!

Dão me cabo de tudo esses ladrões!

Raios os partam! Andai lá que enfim"

E deixando a gaiola pendurada,

Continuou a ler o seu latim,

          Fungando uma pitada.

Vinha tombando a noite silenciosa;

E caía por sobre a natureza

Uma serena paz religiosa,

          Uma bela tristeza

Harmónica, viril, indefinida.

          A luz crepuscular

Infiltra-nos na alma dorida

Um misticismo heróico e salutar.

As árvores, de luz inda douradas,

Sobre os montes longínquos, solitários,

Tinham tomado as formas rendilhadas

          Das plantas dos herbários.

Recolhiam-se a casa os lavradores.

Dormiam virginais as coisas mansas:

          Os rebanhos e as flores,

          As aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade;

A sua negra, atlética figura,

Destacava na frouxa claridade,

          Como uma nódoa escura.

E, introduzindo a chave no portal,

          Murmurou entre dentes:

          "Tal e qual tal e qual!

Guisados com arroz são excelentes."

          * * * * * *
Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos

Tinham o brilho meigo, aveludado,

Do sorriso dos mártires, dos justos.

Um eflúvio dormente e perfumado

Embebedava as seivas luxuriantes.

Todas as forças vivas da matéria

Murmuravam diálogos gigantes

          Pela amplidão etérea.

São precisos silêncios virginais,

Disposições simpáticas, nervosas,

Para ouvir falar estas falas silenciosas

          Dos mundos vegetais.

As orvalhadas, frescas espessuras,

Pressentiam-se quase a germinar.

Desmaiavam-se as cândidas verduras

Nos magnetismos brancos do luar.


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E nisto o melro foi direito ao ninho.

Para o agasalhar, andou buscando

Umas penugens doces como arminho,

Um feltrozito acetinado e brando.

          Chegou lá, e viu tudo.

Partiu como uma frecha; e, louco e mudo,

Correu por todo o matagal; em vão!

Mas eis que solta de repente um grito

Indo encontrar os filhos na prisão.

"Quem vos meteu aqui?!" O mais velho,

Todo tremente, murmurou então:

"Foi aquele homem negro. Quando veio,

Chamei, chamei Andavas tu na horta

Ai que susto, que susto!, ele é tão feio!

Tive-lhe tanto medo! Abre esta porta

E esconde-nos debaixo da tua asa!

Olha, já vão florindo as açucenas;

Vamos a construir a nossa casa

          Num bonito lugar

Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas

          Para voar, voar!"

          E o melro alucinado

          Clamou:

                         "Senhor! senhor!

É porventura crime ou é pecado

          Que eu tenha muito amor

          A estes inocentes?!

Ó natureza, ó Deus, como consentes

Que me roubem assim os meus filhinhos,

          Os filhos que eu criei!

Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,

          Quanta noite perdida

          Nem eu sei...

          E tudo, tudo em vão!

          Filhos da minha vida

          Filhos do coração!!!

Não bastaria a natureza inteira,

Não bastaria o Céu par voardes,

E prendem-vos assim desta maneira!

          Covardes!

A luz, a luz, o movimento insano,

Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa

          Encarcerar a asa

É encarcerar o pensamento humano.

A culpa tive-a eu! Quase à noitinha

          Parti, deixei-os sós

A culpa tive-a eu, a culpa é minha,

          De mais ninguém! Que atroz!

          E eu devia sabê-lo!

Eu tinha obrigação de adivinhar

Remorso eterno! eterno pesadelo!

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Falta-me a luz e o ar! Oh, quem me dera

          Ser abutre ou fera

Para partir o cárcere maldito!

E como a noite é límpida e formosa!

          Nem um ai, nem um grito

Que noite triste!, oh, noite silenciosa!"

E a natureza fresca, omnipotente,

          Sorria castamente

Com o sorriso alegre dos heróis.

          Nas sebes orvalhadas,

Entre folhas luzentes como espadas,

          Cantavam rouxinóis.

          Os vegetais felizes

Mergulhavam as sôfregas raízes

A procurar na terra as seivas boas,

Com a avidez e as raivas tenebrosas

Das pequeninas feras vigorosas

Sugando à noite os peitos das leoas.

A lua triste, a Lua merencória,

          Desdémona marmórea,

Rolava pelo azul da imensidade,

Imersa numa luz serena e fria,

          Branca como a harmonia,

          Pura como a verdade.

E entre a luz do luar e os sons das flores,

Na atonia cruel das grandes dores,

          O melro solitário

Jazia inerte, exânime, sereno,

Bem como outrora o Nazareno

          Na noite do calvário!

Segundo o seu costume habitual,

          Logo de madrugada

O padre-cura foi para o quintal,

Levando a Bíblia e sobraçando a enxada.

          Antes de dizer missa,

O velho abade inevitavelmente

          Tratava da hortaliça

E rezava a Deus-Padre Omnipotente

          Vários trechos latinos,

Salvando desta forma, juntamente,

As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já de longe ia bradando:

                                 "Olé!

          Dormiram bem? Estimo

          Eu lhes darei o mimo,

Canalha vil, grandíssima ralé!

Então vocês, seus almas do Diabo,

Julgam que isto que era só dar cabo

          Da horta e do pomar,

E o bico alegre e estômago contente,

E o camelo do cura que se aguente,

Que engrole o seu latim e vá bugiar!

Grandes larápios! Era o que faltava

          Vocês irem ao milho,

          E a mim mandar-me à fava!

Pois muito bem, agora que vos pilho

Eu vos ensinarei, meus safardanas!

Vocês são mariolões, são ratazanas,

Têm bico, é certo, mas não têm tonsura

E, nas manhas, um melro nunca chega

Às manhas naturais de um padre-cura.

O melhor vinho que encontrar na adega

É para hoje, olé! Que bambochata!

Que petisqueira! Melros com chouriço!

          E então a Fortunata

Que tem um dedo e jeito para isso!

Hei-de comer-vos todos um a um,

Lambendo os beiços, com tal gana enfim,

Que comendo-vos todos, mesmo assim

Eu fico ainda quase em jejum!

E depois de vos ter dentro da pança,

          Depois de vos jantar,

Vocês verão como o velhote dança,

Como ele é melro e sabe assobiar!"

Mas nisto o padre-cura, titubeante,

          Quase desfalecendo,

Atónito de horror, parou diante

          Deste drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade,

          Despertou da atonia,

Lançando-se furioso contra a grade

          Do cárcere. Torcia,

Para os partir os ferros da prisão,

Crispando as unhas convulsivamente

          Com a fúria dum leão.

Batalha inútil, desespero ardente!

Quebrou as garras, depenou as asas

          E alucinado, exangue,

          Os olhos como brasas,

Herói febril, a gotejar em sangue,

Partiu num voo arrebatado e louco,

          Trazendo, dentro em pouco,

Preso do bico, um ramo de veneno.

E belo e grande e trágico e sereno,

Disse:

          "Meus filhos, a existência é boa

Só quando é livre. A liberdade é a lei,

Prende-se a asa mas a alma voa

Ó filhos, voemos pelo azul! Comei!" -

E mais sublime do que Cristo, quando

Morreu na Cruz, maior do que Catão,

Matou os quatro filhos, trespassando

Quatro vezes o próprio coração!

Soltou, fitando o abade, uma pungente

Gargalhada de lágrima, de dor,

E partiu pelo espaço heroicamente,

Indo cair, já morto, de repente

Num carcavão com silveiras em flor.

E o velho abade, lívido d'espanto,

          Exclamou afinal:

"Tudo o que existe é imaculado e é santo!

Há em toda a miséria o mesmo pranto

E em todo o coração há um grito igual.

Deus semeou d'almas o universo todo.

Tudo que o vive ri e canta e chora

Tudo foi feito com o mesmo lodo,

Purificado com a mesma aurora.

Ó mistério sagrado da existência,

          Só hoje te adivinho,

Ao ver que a alma tem a mesma essência,

Pela dor, pelo amor, pela inocência,

Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!

Só hoje sei que em toda a criatura,

Desde a mais bela até à mais impura,

Ou numa pomba ou numa fera brava,

Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!

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Ah, Deus é bem maior do que eu julgava"

E quedou silencioso. O velho mundo,

Das suas crenças antigas, num momento,

Viu-o sumir exausto, moribundo,

          Nos abismos sem fundo

Do temeroso mar do Pensamento.

E chorou e chorou A Igreja, a Crença,

Rude montanha, pavorosa, escura,

Que enchia o globo com a sombra imensa

Dos seus setenta séculos d'altura;

O Himalaia de dogmas triunfantes,

Mais eternos que o bronze e que o granito,

Onde aos profetas Deus falava dantes,

Entre raios e nuvens trovejantes,

Lá dos confins sidérios do infinito;

Esse colosso enorme, em dois instantes

Viu-o tremer, fender-se e desabar

          Numa ruína espantosa,

Só de tocar-lhe a asa vaporosa

Duma avezinha trémula, a expirar!

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E, arremessando a Bíblia, o velho abade

Murmurou:

                "Há mais fé e há mais verdade,

          Há mais Deus concerteza

Nos cardos secos dum rochedo nu

Que nessa Bíblia antiga Ó Natureza,

A única Bíblia verdadeira és tu!..."
                                                                 Guerra Junqueiro
Do livro: "Primores da Poesia Portuguesa", org. J. Queiroz, Livraria Quaresma, 1913, RJ

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